"Meus dias estão contados"

Acordei disposta a resolver todas as minhas pendencias hoje. Liguei pra retomar contato com uma amiga que não falo a anos. Nem lembro porque paramos de nos falar, sinceramente não sei se aconteceu alguma coisa ou se simplesmente fomos nos afastando. Talvez tenha sido a falta de tempo, realmente não lembro. Também marquei um almoço com meus pais porque eles me chamam todo final de semana pra almoçar com eles e eu nunca vou porque sempre tenho outro compromisso ou estou só com preguiça mesmo, mas quando se está morrendo é preciso se encontrar com os pais, pode ser a última vez, né? 
    Beijei meu esposo logo que nos acordamos, resolvi deixar pra lá a discussão que tivemos na noite anterior. Afinal, acho mesmo que nós dois precisamos melhorar alguns aspectos. Ainda na cama, antes do café, nós nos beijamos. Não foi um selinho como a gente trocava todas as manhãs, foi um beijo de verdade, de casal apaixonado, sabe? A gente meio que se esquece de que ainda se curte. Super natural né? Dia a dia, correria, perrengues financeiros, filhos, ufa... não dá pra ser assim tão apaixonado todo dia, mas se está morrendo, quando descobre que está com os dias contados, daí não dá pra ser só um selinho.
    Aproveitei que era domingo e fui acordar as crianças com um beijinho. Posso curtir mais um tempinho com eles na cama, sentindo o cheirinho de sono. Eles ficam lesadinhos quando acordam, viram de um lado para o outro sem querer encarar a realidade de que precisam levantar. Preparei um café legal, com o que tinha no armário e na geladeira, mas fiz com prazer porque eu quero que eles guardem na memória esses momentos felizes em que estávamos juntos.
    Como eu estava disposta a resolver todas as pendências decidi ligar pra uma antiga colega de trabalho. Nos desentendemos, eu acho que ela foi muito injusta comigo. Ah, mas quer saber, todo mundo faz as pazes antes de morrer, ou ao menos faria se tivesse oportunidade, você não acha?
    Sempre assisti nos filmes que quando a pessoa está morrendo ela faz uma viagem pelo mundo, sai pra conhecer as belezas que nunca viu e encontrar-se consigo mesma, mas preferi ouvir o conselho do personagem do livro “O dia do curinga” de Gaarder: “Meu conselho para todos que querem se encontrar é continuarem bem onde estão. Do contrário é grande o risco de se perderem para sempre”. Eu queria me encontrar comigo mesma, mas decidi fazer isso me encontrando com quem estava na minha vida, só por isso preferi não viajar pelo mundo, embora, se eu tivesse mais tempo ainda faria uma ou outra viagem. Deve ser bom ver as belezas do mundo, mas também é incrível conhecer as belezas da nossa casa, da nossa comunidade, do nosso lugar.
    Sempre ouvi falar que estresse faz mal a saúde, então diante do fato de que eu precisava de um pouco mais de saúde, decidi ter um dia mais leve. Obviamente não podia controlar as coisas externas, mas eu podia treinar minha percepção e controlar minha atitude frente as realidades externas, afinal essa era a única coisa que eu realmente podia controlar.
    Fiz o exercício que anteontem tinha deixado pra ontem e ontem deixei pra hoje. Hoje eu fiz, porque quero estar bem todo o tempo que antecede meu encontro com a morte. Também li umas páginas de um livro que gosto, escrevi um texto para deixar registrado meus aprendizados e trabalhei num projeto que vinha adiando a anos. Temo não dar tempo fazer tudo hoje, mas se a morte for gentil comigo e ela diz que é, ela vai me deixar concluir essas tarefas porque não é mais uma questão de adiar, é só limitação temporal mesmo.
    Já no fim do dia convidei uma pessoa que admiro pra tomar um café, sei lá gosto tanto dela, admiro tanto, achei que era um bom momento para estreitar os laços.  Claro que ela não entendeu muito bem, porque nem éramos amigas, mas quando expliquei a ela que eu provavelmente, teria pouco tempo de vida e por isso queria realizar esse desejo de conhecer uma pessoa nova, conversar e encontrar interesses em comum, ela topou. 
    Enquanto combinávamos onde e que horas seria nosso café, ela me perguntou:
    - Você está em qual hospital?
    - Não, não estou hospitalizada, estou em casa.
    - Mas você consegue sair? Está se sentindo bem?
    - Consigo, claro, estou me sentindo ótima.
    Minha quase amiga não entendeu muito bem.
    - Você está doente?
    - Não, graças a Deus não.
    - Mas você não disse que queria realizar alguns desejos antes da morte?
    - E precisa estar doente para estar próxima da morte?
    - Ah, então você sofreu um acidente, é isso?
    - Deus me livre! Graças a Deus não, estou ótima.
    Minha quase amiga não estava entendendo nada. Percebi que seria gentil da minha parte explicar:
    - Eu tenho pouco tempo para realizar tudo que preciso antes de morrer, você não? Eu tenho os dias contados, só não sei quantos são, você sabe? Eu não tenho todo o tempo do mundo, meu tempo é limitado e por sorte descobri isso antes de ser tarde demais. Me sinto muito sortuda por ter percebido que eu não podia mais deixar para amanhã o que é realmente importante para mim antes de me encontrar com a morte. Eu sei que quando ela chegar para me buscar ela não vai me deixar para depois mesmo que eu peça, mesmo que eu tenha pendências. Ela não vai cometer o meu erro. Amanhã pode ser que eu ainda tenha tempo ou não, mas daí achei melhor não arriscar. Eu acredito que há vida após a morte, mas eu quero vive-la agora, você não?

Escrito por Danille Santiago

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