A expressão vem de longe, lá do século VII, quando saiu a primeira edição do Liber Iudicium (ou “Livro dos Juízes”), depois chamado, na Espanha, de Fuero Juzgo, uma espécie de manual de procedimentos para orientar os que julgavam o povo e que nasceu da nem sempre harmoniosa relação entre a Igreja e o Estado.
Para encurtar a história, que é longa, o Liber foi uma compilação dos direitos romano e gótico (visigótico) com o direito canônico, resultando em uma lei geral, que atribuía aos bispos católicos poder para que julgassem, como que em sede de recurso, os juízes que julgassem “torto”, ou seja, contra o direito.
O texto medieval, segundo tradução de João Marques Brandão Neto, Procurador da República em Santa Catarina e estudioso da história do direito, dizia mais ou menos, assim:
Nós admoestamos aos bispos de Deus, que devem ter guarda sobre os pobres e sobre os coitados, por mando de Deus; que eles admoestem os juízes que julgam torto contra os povos, para que melhorem e que façam boa vida e que desfaçam o que julgaram mal. O bispo em cuja terra está, deve chamar o juiz que dizem que julgou torto, e outros bispos, e outros homens bons, e emendar o pleito com o juiz, segundo o que é de direito. E se o juiz não queira emendar o julgamento com o bispo, então este pode julgar por si, e faça um escrito de como emendou o julgamento e envie este escrito ao rei, juntamente com a pessoa que estava agravada, para que o rei confirme o que lhe parecer que é direito.
Assim, quem se sentisse injustiçado, tinha todo o direito de ir “queixar-se ao bispo”. Não nos esqueçamos que a ideia de “estado”, como temos hoje, com toda a sua organização e Poderes estabelecidos, é recentíssima (Revolução Francesa) e a relação com o Estado se pautava pela cooperação. Ora, diferente não poderia ser, pois a Igreja Católica, por 1.800 anos foi a única organização global cuja atuação não se atrelava às fronteiras da nações.
Aos bispos, poderiam recorrer, “queixando-se”, os “pobres e coitados”, não somente maltratados pela vida, mas, também, pelos juízes iníquos, para que “desfaçam o que julgaram mal”. Assim era. “Queixar-se ao bispo” era uma espécie de tábua de salvação que os pobres tinham frente aos abusos do braço estatal. Ao contrário de uma afronta, era um direito. Queixar-se ao bispo era lei.
Hoje, os juízes estatais, dada a benfazeja separação entre Igreja e Estado, felizmente não estão mais submetidos à “revisão eclesiástica”. Mas, a ideia persiste, uma vez que o bispo, numa diocese, pela sua função peculiar, continua sendo referência para quem procura justiça.
Renato Moreira de Abrantes
Doutor em Direito Constitucional
Mestre em Educação e Ensino
Especialista em Direito Canônico
Professor universitário
Advogado do Escritório Marinho & Abrantes, em Quixadá
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